“Portanto, o que é a verdade? Uma multidão de metáforas, metonímias [...] enfim: uma soma de relações poética e retoricamente potencializadas, transpostas e ornadas e que, depois de longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões sobre as quais se esqueceu tratar-se de metáforas que se tornaram usadas e sem força sensível, moedas que perderam seu valor e agora são consideradas apenas metal, e não mais moedas.”NietzscheDiscutir religião sempre foi complicado. E ainda é. Há pessoas que acham a idéia de debater o assunto simplesmente absurda (ninguém gosta de ouvir críticas à própria religião, e menos ainda de ser criticado por ser de determinada religião). E não existe motivo para tirar a razão delas, já que discutir religião ressalta as diferenças ao invés das semelhanças. No entanto, existe o direito de discutir o assunto, assim como existe o direito de liberdade de expressão. Logo, debater ou criticar religiões é um direito de todos, mesmo que muitos abram mão desse direito para a manutenção da (boa) convivência.
Evangélicos, católicos, panteístas, ateus, agnósticos, Testemunhas de Jeová, cada um tem sua(s) opinião (ões). Quando existe o desejo, a intenção de emitir essa(s) opinião(ões), não é em qualquer lugar e em qualquer contexto, isto é, em qualquer situação, que isso é feito; geralmente, isso acontece quando todos estão dispostos a discutir o tema de uma forma civilizada, sem levar (muito) para o lado pessoal, como nas escolas, que não têm ensino religioso (obrigatório), mas têm aulas de História, Sociologia e Filosofia; nessas disciplinas, é impossível fugir do assunto; mesmo que alguém não queira giões espíritas são. A maioria da população brasileira não é espírita, o que acaba tornando comum o fato de muitas pessoas criticarem esse tipo de religião sem serem confrontadas, mesmo havendo o consenso de que não é bom discutir religião. Entretanto, se alguém apontar defeitos de uma determinada igreja protestante, por exemplo, terá boas chances de ser repudiado quase que instantaneamente. Não é difícil (apesar de triste) imaginar uma pessoa se afastando de outra por essa última ser espírita. Crianças, jovens e adultos espíritas sofrem discriminação.
Qual é o problema com a Umbanda? Qual é o problema com o Candomblé? Qual é o problema com o Kardecismo? Qual é o problema com o espiritismo? Preconceito é a resposta.
As pessoas são preconceituosas e ignorantes. Com exceção dos hipócritas, que já foram a algum terreiro para consultar algum espírito e depois falaram mal da religião cujo templo lhes ofereceu ajuda, as pessoas parecem desconhecer e ter uma profunda antipatia a qualquer coisa ou idéia que tenha a ver com religiões espíritas. Palavras como “incorporação”, “orixá”, “Exu”, e outras, soam desagradáveis aos ouvidos de muitos, como se fossem algo indecente, errado, horroroso. Lamentável. As pessoas que enxergam dessa forma, na verdade, estão cegas. Não que haja intenção de apoiar, defender ou dizdiscursar, vai ter de ouvir um discurso sobre religião (o que não é absurdo algum, uma vez que o país é uma democracia). Mas há algo que chama a atenção. No Brasil, a Umbanda e o Candomblé são duas religiões muito mal conhecidas e muito mal vistas. O Kardecismo também. Todas as relier que as religiões espíritas são as certas e as outras as erradas. Nada disso. Mas sim a de dizer que essas religiões... São religiões. E que fique bem claro que o autor deste trabalho é agnóstico e, há alguns meses, era ateu.
Discordar dos preceitos de uma religião que não seja a própria é muito comum. Por exemplo: Um freqüentador da Igreja Batista discorda de alguns ensinamentos católicos, e vive-versa. Porém, no caso das religiões espíritas, parece haver algo mais, algo além da pura diferença de doutrina. É como se houvesse um verdadeiro sentimento de repulsa por elas. Todas as religiões, apesar das diferenças, têm algo em comum: A crença em Deus. É graças a essa crença comum que católicos, protestantes e Testemunhas de Jeová conseguem se relacionar e não mostrar a face da discriminação e da intolerância uns aos outros no Brasil. É fato que em outros lugares do mundo as coisas não são bem assim: Muitas mortes houve por causa de religião, por causa dos conflitos gerados entre os fundamentalismos (religiões consideradas sagradas baseadas em livros tidos como sagrados também) islâmico e judeu. Mas no Brasil, um país democrático, não deve haver intolerância e tanta aversão a religiões espíritas. Ou, pelo menos, não deveria haver. As religiões espíritas crêem em Deus, e tem seus próprios códigos de conduta. É possível enxergar essa semelhança nas outras religiões. Por que não é possível fazer o mesmo na Umbanda, no Candomblé e no Kardecismo?
Imagine uma criança que tem pais evangélicos. Agora, imagine outra que tem pais umbandistas. A primeira muito provavelmente discriminará as religiões espíritas e dificilmente será instruída a não falar mal delas (afinal, a maioria é como ela, ou seja, não é espírita; o que há a temer?). É claro que pode acontecer de ela ser alertada a não criticar religião alguma, espírita ou não, e a não discriminar e a ter tolerância, mas a tendência é sempre criticar as religiões espíritas e seus seguidores e “respeitar” as demais. No entanto, a aversão a religiões espíritas, embora nem sempre declarada, é, no mínimo, incentivada nos filhos de pais não-espíritas; parece que os pais acham isso bom, natural até. Pare para contar: Quantas pessoas sabem a diferença entre a Umbanda e o Candomblé? Ou melhor: Quantas pessoas sabem que Umbanda e Candomblé são religiões diferentes? A maioria as chama vulgarmente de “Macumba”. E isso porque, quando crianças, não receberam instrução, apenas preconceito. Já a segunda criança, filha de umbandistas, ou será instruída a não revelar a sua religião (tarefa difícil, pois sempre há quem pergunte) ou será instruída a argumentar a favor dela e não criticar as demais. Esse ensinamento acaba ficando para o resto da vida.
É triste ver que o preconceito às religiões espíritas são preservados. E mais triste ainda é ver que eles não têm fundamento. É difícil entender por que existe tanto preconceito e discriminação. Os umbandistas, kardecistas e seguidores do Candomblé não saem aos domingos para bater de porta em porta incomodando as pessoas para convencê-las de sua verdade e, mesmo assim, são mal vistos. Eles não fazem pregações escandalosas, nem em templos e nem em trens, e nem pedem dinheiro com promessas de retorno e, mesmo assim, são mal vistos. Eles nunca foram até uma igreja em construção apedrejá-la e destruí-la e, mesmo assim, são mal vistos. Nenhum umbandista, kardecista ou seguidor do Candomblé foi responsável por grandes manobras políticas (mesmo que um garotinho tenha muitos doces no bolso e na barriga por apenas um real) e, mesmo assim, são mal vistos. O que é alegado, então? Que a religião deles “não é de Deus”? Que ela é “coisa do Diabo”? Que ela tira as pessoas do “caminho da salvação”? O que mais vai ser dito? Que ela é “maligna”? Que ela incentiva a “fazer o mal”? Que ela tem vínculos com os maias budistas? Ou com os incas venusianos?
Com o passar dos anos, o preconceito vai diminuir, mas sempre com o risco de aumentar. Ele nunca vai ser erradicado. Ele pode ser apenas acuado, diminuído. Isso se faz combatendo-o, e combate-se o preconceito – todo o tipo de preconceito, não apenas o religioso - nas escolas, sendo que o religioso deve ser combatido justamente nas aulas (de História, Sociologia e Filosofia) em que é impossível fugir do tema religião. Cabe, sim, não somente aos pais, mas à escola, também, combater o preconceito e a intolerância religiosa (aliás, ao contrário do que alguns DESeducadores dizem, a escola é, sim, um lugar para receber educação e formação; o lar dos alunos chefiados por pais e mães não é o único lugar para isso). O ideal é evitar discutir religião e, contudo, se houver intenção de fazer isso, que seja em situações apropriadas e com muito cuidado, mesmo, para que as diferenças não sejam muito realçadas e conflitos não sejam gerados. É difícil dizer se os adultos espíritas que trabalham devem ou não esconder a sua religião no trabalho devido ao que podem enfrentar, mas, fora desse ambiente, dificilmente haverá razão para esse fato ser escondido. E os jovens espíritas não devem esconder o fato de serem adeptos ao espiritismo, seja por qual motivo for: medo de ser alvo de piadas, medo de não fazer amigos (ou de ser excluído do grupo de amigos). Nada disso pode ser usado como desculpa para esconder o fato de ser espírita. Ninguém deve esconder o fato de acreditar em determinada religião (assim como nenhum ateu deve esconder o fato de ser ateu). Se uma pessoa (ou grupo de pessoas) deixar de falar com outra por essa última ser espírita ou atéia, que assim seja: isso é motivo de comemoração, pois alguém que deixa de falar com outro alguém só porque o último é espírita ou ateu, nunca mereceu a amizade ou companhia desse último alguém. Não há alegria maior que ficar livre da companhia de pessoas falsas e preconceituosas. Não há felicidade maior que saber quem é realmente amigo e quem não é. Além do mais, enquanto muitos esconderem sua crença (ou descrença), a situação de preconceito não mudará tão cedo. Em outras palavras, não ter medo é a primeira ferramenta a ser usada para acuar o preconceito. Ninguém é obrigado a concordar com a religião de alguém. Mas todos devem respeitar os seguidores de uma religião. Ninguém é obrigado a crer em Deus. Ninguém é obrigado a descrer Nele também. E todos têm o direito de crer Nele de um jeito diferente, com uma religião que cada um escolher, que cada um achar melhor. E todos merecem respeito. Todos, não importando no quê acreditam ou deixam de acreditar. Agora, só para aqueles que têm religião: ninguém tem o direito de desrespeitar e discriminar uma pessoa por ela ser de alguma religião espírita ou não-espírita. Um evangélico, por exemplo, não deve sentir antipatia a um umbandista. Afinal, ambos crêem em Deus, e quem tem vidraça não deve atirar pedra. Não é tão difícil assim. O Brasil é um país laico e também uma democracia, não é verdade?
Por fim, para aqueles que não entenderam a epígrafe deste texto, que é um pensamento de Nietzsche, aí vai a tradução: Nietzsche pergunta o que é a verdade e responde dizendo que a verdade, na realidade, são apenas idéias que se aproximam da “verdade verdadeira”; idéias essas que são transmitidas com vários recursos, como metáforas, e que passaram a ser consideradas absolutas com o passar do tempo, mas, na realidade, elas são só ilusões, e alguns não se dão conta disso; alguns não percebem que a “verdade” são apenas idéias que tentam se aproximar dela; idéias essas que, segundo Nietzsche, apesar de aceitas por alguns, estão ultrapassadas e rejeitadas por outros (para ele, são como “moedas que perderam o valor e tornaram-se apenas metal”). Logo no início, Nietzsche diz que a verdade é “uma multidão de metáforas e metonímias”, já indicando que ela é falsa. Há um quê de hostilidade e arrogância nesse trecho. E não é por menos: Não bastasse a “verdade falsa” ser tida como verdadeira para muitos, nem todos realmente a compreendem (daí o motivo de Nietzsche dizer que ela é uma “’multidão’ de metáforas e metonímias”, pois elas são aceitas sem serem analisadas com profundidade). Ou são mal interpretadas. Ou não, pois não existe uma única e verdadeira interpretação, mas tantas quantas forem os intérpretes. Então, caro(a) leitor(a), que chegou até aqui, se você tiver alguma “verdade absoluta”, seja ela um livro “sagrado” ou não, fique sabendo que ninguém é obrigado a aceitá-la e, se você a aceita deve estudá-la a fundo, para que, mesmo ela sendo considerada falsa por Nietzsche, mesmo que ela seja tida somente como uma tentativa de aproximação da “verdade verdadeira” por ele, estude-a, para que ela não se transforme em uma multidão de metáforas e metonímias sem sentido para você aceitá-la apenas como um fantoche. Acredite nela se quiser. Mas estude-a. E, como diria um amigo do autor deste texto, EXponha-a, e não IMponha-a: aceite que nem todos são obrigados a aceitá-la, que os outros podem considerá-la falsa e buscar outra. Assim, se todos puderem conviver com as diferenças de opinião do que é a verdade e de opinião religiosa, haverá menos discriminação e menos preconceito.
Texto de meu amigo
Márcio Alessandro de Oliveria, do blog "
Alguém berra".