Não foi uma noite fácil. A princípio, tudo parecia bem, parecia ótimo, e por muito, assim continuou. Somente aquele friozinho chato na barriga, como já sentira outras vezes. Normal. Pisava com cautela em terras estrangeiras, em territórios inexplorados no coração. Um certo medo de se frustrar, algo assim. E essa mania chata de fantasiar coisas irreais, devaneios? Enquanto pegava o trem (que sonhava que fosse como os europeus), ainda estava incerto do destino, pensava em desistir, deixar pra lá. Mas nem se quisesse, poderia. Deveria, e até mesmo queria, ir até o fim. Que seja.
***
Pela janela imunda do trem, se vê a chuva começando a cair. Cair forte. Não chovia a dias, mas tinha que ser hoje? O tempo já prometia, nublado, a uns três dias. Tinha que ser. Mas foda-se. O calor dentro do trem já estava deixando zonzo. Odiava tudo aquilo: pessoas, lugar pequeno, sacolejar do vagão nos trilhos, as vozes irritantes, os gritos dos ambulantes, o ar já respirado... Estava quase desenvolvendo uma claustrofobia graças ao Metrô e lugares como aquele.
Viagem interminável. Embora fosse um trem “direto”, parava mais do que o trem normal. Tentava diminuir a irritação, enquanto pensava no que viria no resto da noite. Chegou, e chove. Muito!
***
Agora estava encharcado. Mas encharcado mesmo, da cabeça aos pés. Sua fantasia de príncipe encantado, vindo de um reino muito, muito distante, para visitar a princesa se desfez em questão de segundos. Tudo o que não podia molhar está na sua mochila: o livro (que era um presente) “Pra sempre teu, Caio F.”, um livro de Sartre, uma cópia do projeto de mestrado do seu professor, o Panda de pelúcia, etc. Não tinha 2 centímetros do corpo seco. Ônibus lotado, ainda por cima. Pessoas úmidas, molhadas, encharcadas. Calor. Ruas completamente alagadas. Vinte minutos pra chegar até a pracinha escura que precede o Teatro.
***
Olhava no espelho: estava imundo, suado, molhado, descabelado, fedorento. Tirava as duas blusas que vestia, enquanto pensava em como demorou pra escolher a droga da roupa pra essa noite, e agora ela estava assim, podre. Espremia as duas, até tirar todo o excesso de água (muita, muita água).
Olha no espelho novamente: ainda está horrível, mas menos molhado. Puta que pariu...
***
Entrava no Teatro quando, logo na entrada, vê uma figura de cabelo conhecido. Afagou a cabeça dela, subiu e se sentou. Ela o observou e seguia. Abraçava-a com carinho, úmido, mas com muito carinho. Ela comentou com um sorriso o estado dele, e nesse instante estava agradecendo a Deus por estar ali, com ela.
Aliás, ótimo espetáculo...
***
A chuva ainda caí, as ruas ainda alagadas, mas o pior ainda estava por vir: a escuridão. De repente, as luzes do teatro ficam em modo de emergência. Descobre-se que em toda a parte falta energia. E agora? Tão longe de casa, fudido.
Então estava com o grupo de amigos (dela). Todos juntos, pra evitar o perigo. Hobbes tem toda a razão: o Homem é o lobo do Homem. As pessoas não estavam preocupadas se a energia voltaria algum dia, quando voltaria, como iriam pra casa. Queria era chegar em casa, vivas, sãs e sem que tenham sido roubadas. Medo, medo que se instaura nos corações do Homem, medo do outro homem. Onde chegamos?
***
Vendo que já não valia a pena, estava decidido a partir. Meio "estranho no ninho", sabe? No íntimo, torcendo pra ir logo pra casa. Não por medo (do escuro ou dos “lobos”), mas com um insistente mal-estar. Um mal-estar que já sentira antes, numa ocasião parecida. Pena, que pena. Não deveria ser assim, mas era.
Despedida tranqüila. Nada demais, embora fantasiasse um pouco (até nisso). Depois corria, sem nem olhar pra trás. Gostava dela, gostava demais dela.
***
E o mundo se apagou. De verdade. Ao menos era o que parecia. Luzes aqui e ali, mas não havia luz, nem nos postes, nem nos semáforos. Pegava o ônibus e desejava chegar logo em casa. Fazia promessas tolas, pensando num futuro que não seria. Devaneios, mais deles. E o ônibus foi, em meio a trevas, com um feixe de luz em meio a escuridão...
***
Casa, finalmente casa. Abraçava o pai, dizendo que estava tudo bem. “Onde está a mãe?”. Nem mesmo havia terminado de trocar de roupa, quando, de cueca, ligava para sua amiga. Melhor amiga. Única, talvez.
Fora ela, essa conversa, que fez o seu dia terminar bem. Pois em meio a tristeza dos problemas do coração, havia as brincadeira. E melhor que isso, a chance de ser útil a alguém que ama tanto. Dizia a ela que tudo ia ficar bem, e acreditava nisso. Dizia-lhe que estaria sempre ali pra ela, pois de fato, jamais a deixaria. Faziam planos bobos, mas divertidos e que, se não virasse realidade, pelo menos tinha um sabor doce do sonho. “Que seja doce”.
***
E depois de comer um miojinho, em meio as trevas, dormia. Dormia pensando em tudo, e pensando em como a noite não foi fácil. Mas tudo bem, amanhã será um novo dia. E uma chance de fazer tudo diferente de novo, quem sabe. Não sei. Só sei que nunca mais pegaria uma chuva daqueles, mesmo que tivesse que ficar preso dentro de um quarto escuro (e coberto). E que a escuridão, embora apavorante a princípio, eram até reconfortante agora...
Nenhum comentário:
Postar um comentário